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És_criativo(a): atividade de escrita

Partilha de textos

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A revolta da máquina de escrever

10.02.23

Esta história começa no dia 8 de agosto de 1962. Pardal, um jovem magro, alto, de cabelo preto e roupas encardidas, estava sentado à mesa, num canto da sala, com um copo na mão do que parecia ser um líquido de tom acastanhado e, à sua frente, uma máquina de escrever. Sentindo um leve safanão no seu ombro, o garoto olha para trás e vê a sua mãe, Ceissa, mais conhecida como Fogo que Dança, com um olhar repreendedor, e ela pergunta:

- Pardal, de onde tiraste essa bebida? Sabes muito bem que, se queres beber, tens de pagar, mesmo que o bar seja nosso. Amigos, amigos, negócios à parte.

-Eu sei, mãe, desculpa. Não volta a acontecer.

- Estás perdoado. Vou apenas arrumar o bar e já vamos para casa. Trata de arrumar essa máquina de escrever, não a queiras partir.

Pardal assim fez. Arrumou a sua maior preciosidade: aquela imponente máquina de escrever que continha todos os seus segredos, as suas mágoas, as suas desilusões amorosas e, mais importante, as contas do bar. A sua mãe veria a sua cabeça numa lança se ele perdesse aqueles registos que tinha acabado de escrever!

Ceissa, ou Fogo que Dança, era uma mulher baixa, de cabelos longos e pretos trançados, usava uma saia preta longa, e uma camisola com o que pareciam ser alguns padrões indígenas, talvez. Pardal não tinha bem a certeza.

Os dois saíram do bar de que eram donos e dirigiram-se para casa. Uma casa simples e humilde. Já se fazia tarde em Sacramento, a cidade onde moravam. Tinham feito uma refeição no bar, por isso, decidiram ir diretos para a cama. Despediram-se com um beijo na testa e cada um foi para o seu quarto. No caminho para o quarto, Pardal viu-se em frente a um retrato que tinha uma moldura de madeira com detalhes em dourado e continha uma pintura: Ceissa e um homem, muito parecido com Pardal, que era o seu pai. Ele trabalhara nas minas de carvão, tinha cerca de quarenta e quatro anos, e viera a falecer com tuberculose no ano anterior. Tinha passado apenas um ano, mas a saudade nunca desaparecia e consumia Pardal todos os dias, deixando-o com um vazio enorme no peito e uma vontade imensa de gritar para o mundo “Porquê eu?”. Passou pelo retrato e entrou no seu quarto, que ficava no fim de um corredor bem escuro e estreito. Lá pousou a sua máquina de escrever, retirou os registos do bar, que guardou numa pasta, colocou uma nova folha de papel e começou a escrever tudo o que sentia. “O vazio é tão grande. “, “Não aguento mais.”, “Esta dor tem de acabar.”, “O que eu fiz para merecer tal castigo?”. Eu tenho pena daquela máquina de escrever. Pardal dizia tudo o que sentia à máquina e, coitada, a sua função era registar sem poder opinar. Depois de desabafar, deitou-se na cama, não se importou em trocar a roupa e adormeceu depois de tão merecido desabafo.

Um novo dia em Sacramento começava. Ceissa já estava de pé e preparada para ir trabalhar, porém, Pardal continuava na cama, já acordado, a afogar-se nas suas mágoas, perdido demais em seus pensamentos para ouvir a sua mãe a chamá-lo:

- Pardal, seu moina, levanta-te! Temos de abrir o bar. A hora de servir o pequeno-almoço está quase a começar e tu sabes como o povo em Sacramento é impaciente quando toca a comida, especialmente a minha comida.

- Já vou, mãe. Vai andando. Estarei lá em dez minutos.

-É bom que sim.

Ceissa, então, saiu de casa deixando Pardal sozinho. Levantou-se lentamente, parecia um morto vivo, uma alma vazia que não tinha mais nada por que viver, pois, tinha perdido tudo. Vestiu-se e pôs-se a caminho do bar “Fogo que Dança”. Chegou em dez minutos, como tinha prometido à sua mãe. Entrou no bar e todos os olhares se viraram para ele. Toda a gente em Sacramento respeitava a sua mãe, afinal, ela era a Fogo que Dança, dona do maior estabelecimento em toda a cidade. Mas, para ele, olhavam com desdém, pena, desgosto.

Ele ouvia rumores em como o seu pai era um falcatruas, um vagabundo que não era bom o suficiente para a sua mãe, mas ele sabia que os dois partilharam o amor mais puro que alguma vez já fora visto e que ela sofrera muito com a morte dele. Igual ao seu pai, também ele era assim, segundo o povo. Ceissa tinha-lhe dito muitas vezes para ele não ouvir os rumores e que ele era o melhor presente que lhe podiam ter dado. Mas, por onde passava, ouvia sempre pessoas a murmurar “Não sei como a Fogo que Dança o aguenta!”, “Para mim, ele é adotado, não sei como é que ela ainda não o mandou embora.”, “Maloio!”, “Preguiçoso!”, “Bruxo!”; palavras que ouvia todos os dias e que ecoavam na sua cabeça tão alto como tambores.

Mais um dia passado e, como no dia anterior, estava sentado numa mesa ao canto com a sua máquina de escrever à sua frente a registar as contas do bar. Porém, hoje era um dia diferente, tinha tomado uma decisão importante. Estava farto daqueles comentários, dos olhares e principalmente daquele peso no peito que o estava a enlouquecer pouco a pouco.

Momentos depois, chegou a casa, indo direto para o seu quarto, dizendo a Ceissa que não tinha fome. Quando passou por aquele retrato, teve ainda mais a certeza do que iria fazer, tinha muitas saudades do seu pai e iria fazer tudo para poder voltar a vê-lo, custasse o que custasse.

Sentou-se à sua escrivaninha, colocou uma nova folha em branco na máquina de escrever e começou uma carta de despedida para a sua mãe. Depois de acabar aquela carta, colocou outra folha em branco e começou a descrever a sua morte. Como no dia seguinte, 10 de agosto de 1962, iria para um lugar onde haveria uma ponte com uma distância bem alta, se olharmos para baixo, e, a partir daí, iria acabar com a sua vida, atirando-se daquela ponte, para que pudesse ver o seu pai novamente.

A máquina não aguentava mais receber toda aquela informação, ela gostava de Pardal, que tratava bem dela, gostava da sua maneira de escrever e não o queria ver ir embora.

Depois de escrever o último detalhe da sua morte, Pardal colocou a carta para a sua mãe num envelope e noutro a descrição do seu plano endereçado ao xerife. Decidiu ter o seu último sono, mas antes colocou uma nova folha na máquina, talvez por hábito.

Durante o último sono de Pardal, uma coisa estranha aconteceu. Na folha que Pardal tinha deixado na máquina de escrever começaram a formar-se as seguintes palavras:

“A beleza da tua escrita encanta-me! Nem o teu pai escrevia tão bem. Eu tenho a certeza que ele tem saudades tuas, mas para já ainda tens muito para escrever. A vida é cruel para algumas pessoas, pode desgastar a alma e até mesmo levar-te a pensar que já não tens alma. Acredita, vi muitos poetas e escritores a irem pelo mesmo caminho que tu. Tu não és aquilo que as pessoas escrevem sobre ti e tu sabes disso, a tua mãe sabe disso. O que seria dela sem ti para escrever os registos do inventário do bar? Ela dá muitos erros de gramática, eu sei, ela já passou as mãos por mim, mesmo dizendo tu que ninguém podia tocar na tua máquina de escrever. Escreve tu o teu destino. Já escreveste uma versão, mas eu não gostei muito dela. Escreve outra, uma mais bonita, com mais cores, não vejas tudo a preto e branco, apesar de escreveres nessas cores. A escrita é apenas um reflexo dos sentimentos de quem a escreve. Neste momento, os teus sentimentos são um pouco escuros, mas vão melhorar. Dizem que a esperança é para os tolos. Então escreve agora noutra folha: EU SOU UM TOLO!”

Na manhã seguinte, Pardal acordou com a mesma ideia fixa na cabeça até olhar para a sua escrivaninha e notar uma folha já não mais em branco. Ele não sabe o que aconteceu durante aquela noite, mas queimou a carta de despedida e a carta do xerife. E noutra folha em branco escreveu: EU SOU UM TOLO!

Viveu muitos anos e para sempre carregou aquele bocado de folha e para sempre chamou ao acontecido naquela noite a revolta da máquina de escrever.   

Atividade de Escrita Criativa

Literatura Portuguesa - 10.ºF

Maria Eira