O vizinho de Matilde - 2ªparte
(continuação)
Os dois entraram, Daniel não parava de olhar ao seu redor com receio que alguma coisa o pudesse magoar. Quando chegaram à cozinha, Daniel fechou todos os armários, janelas e portas para que não houvesse nenhuma fresta por onde aquele ser o pudesse observar. Alex olhou para ele, confuso, mas não lhe deu muita importância. Alex era um bom amigo, mas sempre achou que Daniel batia mal e que não devia acreditar no ele dizia.
Depois de uma longa conversa no sofá, acompanhada por um copo de whisky, claro, Alex explicou em que enrascada se tinha metido desta vez. Daniel deixou o Alex ficar, com uma condição, ele não podia entrar no quarto de Daniel em nenhuma hipótese. Já era humilhante para Daniel saber que estava a enlouquecer, não precisava que os outros soubessem. Alex concordou. Já era bastante tarde depois daquela conversa, por isso os dois decidiram ir para a cama. Daniel não queria dormir, mas estava exausto.
Foi para o segundo andar, passou por aquele mesmo barulho de goteira, olhou para cima e, por um segundo, podia jurar que tinha visto um vulto no teto, mas o sono era tanto que o ignorou, sabendo que era apenas a sua cabeça. Chegou ao seu quarto e, mais uma vez, trancou tudo para que não houvesse nenhuma fresta. Deitou-se na sua almofada e adormeceu instantaneamente.
Daniel acordou no que sabia ser o meio da noite, rodou para o lado, o relógio marcava duas e onze da manhã e Cerveja estava ao fundo da sua cama, como sempre. Incrivelmente não tinha tido nenhum pesadelo e voltou a rodar para o outro lado. Mas apercebeu-se de que, antes, tinha trancado tudo, menos uma coisa. Burro! Como se podia ter esquecido do armário ao lado da sua cama! Parece que quendo se perde a sanidade as pessoas ficam mais burras e Daniel era a prova disso. Permaneceu quieto, com medo de que algum movimento pudesse provocar o que quer que fosse que estava dentro daquele armário. Enquanto estava a pensar em não fazer nenhum tipo de deslocação, um som deteve-lhe o raciocínio. Parecia que alguém se estava a engasgar. Mas, de uma maneira mais bizarra, se pudesse ficar mais bizarro do que já estava, Daniel continuou imóvel, querendo saber o que iria acontecer a seguir. A causa do barulho parecia estar a subir para a cama de Daniel e ele conseguia sentir a sua cama a afundar. Queria gritar para Cerveja sair dali, mas a gata pareceu não se importar com o que quer que estivesse a subir a cama e ele estava congelado de medo. O barulho ficava mais alto e os passos continuavam. Não pareciam passos, mas sim alguém ou alguma coisa a rastejar em direção a Daniel…
A única coisa que tens de fazer é gritar. Grita! Daniel continuava congelado, nenhum som parecia sair da sua boca. Mais passos, cada vez mais altos. A criatura parecia andar em cima de alguma gosma, seria baba? Mais passos, aquilo não parava de se engasgar. Mais passos. Mais passos. Mais passos. Até que tudo parou. O silêncio era tão desconfortável. Já tiveram a sensação de que alguma coisa terrível está prestes a acontecer?
Daniel não ouvia mais nada. Até que sentiu alguma coisa a pingar na sua cara. Era óbvio, só podia ser uma coisa a escorrer pela sua cara. Uma lágrima. Mais uma e uma... O bicho não parava de chorar. Daniel não conseguia fazer nada. Ele estava completamente imóvel e sem conseguir falar. A única coisa que sentia era pavor. Naquele momento, tudo era um pavor. Não conseguia sentir mais nada, ver mais nada a não ser pavor. Grita! Se gritares tudo acaba. Não sejas idiota, abre a boca e grita. Nada. Ele estava à mercê daquele monstro...
De repente, acordou. Bom dia. Eram duas e onze da tarde, marcava o relógio na sua mesa de cabeceira. Finalmente conseguia mexer-se. A primeira coisa que fez foi olhar para o armário. Estava fechado. Aterrorizado, levantou-se da cama e foi até ao armário. Tinha as mãos a tremer, mas conseguiu abrir. Lá dentro estavam as suas roupas, o que mais podia lá estar?! Estes malucos de hoje em dia!... Suspirou, não tinha a menor ideia do que se tinha passado, a cada dia que passava, mais louco estava a ficar e ele sabia disso.
Tomou um banho e foi direto para a sua cozinha, precisava desesperadamente de um café. Quando chegou, Alex estava a ver televisão e a comer. Alex disse-lhe bom dia, mas Daniel não se deu ao trabalho de responder. Quando abriu o armário, percebeu que as ervilhas em escabeche tinham acabado. Porcaria! Comeu uma maçã e bebeu o seu café. Já não bastava ser louco, ainda tinha que ter um paladar estranho. Depois de os dois terminarem de comer, Daniel disse a Alex que ia ao supermercado comprar ervilhas. Alex ofereceu-se para ir com ele e Daniel aceitou.
Quando chegaram, Daniel limitou-se a pegar numa lata de ervilhas e foi para a fila. Enquanto estava na fila, Alex contou-lhe uma piada, mas Daniel não se riu, estava nervoso, e frustrado. A mulher à sua frente estava atrapalhada com os cheques. Que raio de pessoa vai ao supermercado e paga com cheques?! Não sei quem é mais louco, o Daniel ou a mulher dos cheques. Ela virou-se para trás e Daniel conseguiu ver a sua face, mas uma coisa lhe chamou a atenção. Ela sofria de uma condição chamada heterocromia, um olho dela era verde e o outro, sendo um pouco invulgar, de cor amarela. O olhar dela parecia-lhe familiar. Deixava-o desconfortável olhar para ela, mesmo sendo ela uma moça bonita. O olhar dela parecia misterioso, perigoso. Parecia que, quanto mais olhava para o olho dela, ela olhava diretamente para a sua alma, procurando segredos, os mais sombrios. Rapidamente, ela virou o rosto. Barafustou com a mulher, não queria, mas estava com pressa de ir para casa.
Quando chegou, arrumou a lata de ervilhas no armário e foi direto para o seu escritório. Mais uma vez, passou pela goteira. Desta vez, estava mais alto o som. Mais alto. Daniel caiu no chão de joelhos, tapou os ouvidos com as mãos. Não aguentava mais. Gritou…
O que Matilde não sabia é que ela tinha acabado de levar um homem à loucura, apenas porque se sentia sozinha e olhava para o quintalório do vizinho.
Atividade de Escrita Criativa
Literatura Portuguesa - 10.ºF
Maria Eira